Litígios Transnacionais e Execução de Sentenças Estrangeiras em Angola
Entre a Soberania Jurisdicional e a Integração Económica Global
I. Momento em que o Direito Encontra o Mundo
Considere um grupo empresarial europeu que obtém, perante um tribunal estrangeiro, uma decisão definitiva condenando uma empresa angolana ao pagamento de uma indemnização de avultado valor. A sentença é válida, autêntica e transitada.
Contudo, ao chegar a Angola, o credor descobre que não pode executar imediatamente. Não pode penhorar bens. Não pode aceder a contas bancárias. Não pode promover arresto preventivo dos bens do inadimplente.
A razão é simples: nenhuma sentença estrangeira produz efeitos automáticos em Angola. Antes, deve ser submetida ao processo de confirmação judicial, ou exequatur (acto judicial de reconhecimento de uma sentença estrangeira), perante o Tribunal da Relação competente.
A partir deste ponto, o litígio deixa de ser apenas jurídico. Torna-se um encontro entre soberania nacional e integração económica internacional.
Importa questionar o seguinte: Como compatibilizar protecção soberana com previsibilidade para o investimento global?
II. Triplo Pilar do Reconhecimento de Decisões Estrangeiras em Angola
O sistema angolano de recepção de sentenças estrangeiras organiza-se em três núcleos jurídicos:
i. Sentenças Judiciais Estrangeiras
As decisões judiciais oriundas de tribunais estrangeiros não têm eficácia automática. Dependem do exequatur, nos termos dos arts. 1094.º a 1102.º do Código de Processo Civil, ainda em vigor.¹ Sem essa confirmação, a sentença não existe para fins de execução no território nacional.
Competência: Tribunal da Relação do distrito judicial onde estiver domiciliada a pessoa (física ou jurídica) contra quem se pretende fazer valer a sentença (art. 1095.º do CPC).
Prazo de contestação: 30 dias após citação (art. 1098.º do CPC).
ii. Sentenças Arbitrais Internacionais
As decisões arbitrais estrangeiras beneficiam de reconhecimento através de procedimento específico, ao abrigo da Lei n.º 16/03, de 25 de Julho de 2003 (Lei da Arbitragem Voluntária) e da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (Convenção de Nova Iorque de 1958).²
Angola aderiu à Convenção de Nova Iorque mediante Resolução n.º 38/16, de 12 de Agosto de 2016, e Carta de Adesão n.º 10/16, de 19 de Dezembro de 2016, com depósito do instrumento de adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas em 6 de Março de 2017. A Convenção entrou em vigor para Angola em 4 de Junho de 2017.³
O reconhecimento de sentenças arbitrais internacionais, embora mais célere procedimentalmente do que o exequatur de sentenças judiciais (menos formalismo, prazos reduzidos), permanece sujeito ao mesmo controlo material de ordem pública previsto na Convenção de Nova Iorque (art. V) e na legislação interna.
iii. Cooperação Judicial Internacional
Em matéria de cooperação judicial internacional cível e comercial, aplicam-se:
- Os arts. 1094.º-1102.º do Código de Processo Civil;
- Tratados bilaterais de cooperação judiciária (v.g., Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Portugal e Angola, aprovado pela Resolução n.º 11/97);
- A Convenção de Nova Iorque, para sentenças arbitrais.
A Lei n.º 10/24, de 3 de Julho de 2024, que alterou a Lei n.º 13/15, regula exclusivamente a cooperação judiciária internacional em matéria penal, não sendo aplicável a processos civis ou comerciais.⁴
Entretanto, o entendimento que se tem é de que Angola não recusa a eficácia externa — mas submete-a à verificação da sua ordem jurídica interna.
III. Exequatur: Etapas, Competência e Critério Decisivo
i. Competência Territorial
Nos termos do art. 1095.º do CPC, a competência para o exequatur pertence ao Tribunal da Relação do distrito judicial onde estiver domiciliada a pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença.
Angola conta actualmente com cinco Tribunais da Relação:
- Luanda
- Benguela
- Huambo
- Lubango
- Cabinda
Para pessoas colectivas, a competência determina-se pela sede estatutária ou, na sua falta, pelo local do estabelecimento principal em território nacional.
ii. Requisitos de Confirmação (art. 1096.º do CPC)
Para que uma sentença seja confirmada, é necessário demonstrar:
- Autenticidade e trânsito em julgado (força de caso julgado no país de origem)
- Tradução certificada, quando aplicável
- Competência internacional do tribunal de origem
- Citação válida da parte vencida no processo originário
- Inexistência de decisão conflituosa em Angola sobre o mesmo objecto
- Compatibilidade com a ordem pública angolana
Este último critério é o ponto de inflexão do sistema.
iii. A Ordem Pública como Fronteira Jurídica e Económica
A ordem pública funciona como o limite constitucional e estratégico da integração jurisdicional, ou seja, as sentenças estrangeiras a serem executadas no território angolano não devem colocar em causa a estabilidade social, económica e jurídica de Angola.⁵
A confirmação pode ser recusada quando a sentença:
- Colide com direitos fundamentais consagrados na Constituição
- Afecta sectores estratégicos (petróleo, mineração, terra, finanças públicas)
- Desrespeita garantias processuais básicas (contraditório, fundamentação)
- Viola princípios de ordem pública internacional reconhecidos pelo Estado angolano
Em termos práticos, é possível dizer que a ordem pública é o mecanismo pelo qual Angola afirma a sua soberania jurisdicional, preservando os valores fundamentais da sua ordem jurídica sem comprometer a abertura ao comércio internacional.
iv. Recursos
Da decisão que confirme ou recuse o exequatur cabe recurso para o Tribunal Supremo (Câmara Cível), nos termos do art. 1102.º do CPC, no prazo de 30 dias.
IV. Arbitragem Internacional: Um Modelo Angolano em Construção
A Lei n.º 16/03 representou um ponto de viragem. Angola passou a integrar, formalmente e de forma consciente, os circuitos arbitrais globais, especialmente na contratação empresarial.
A adesão à Convenção de Nova Iorque, concluída em 2017, fortaleceu a confiabilidade contratual, aumentando a previsibilidade e segurança jurídica nas relações transfronteiriças.⁶
Os sectores que mais recorrem à arbitragem incluem:
- Petróleo e gás
- Construção e infraestruturas
- Mineração
- Energia renovável
- Telecomunicações
A arbitragem desloca o conflito para um espaço técnico e neutral, reduzindo a percepção de risco político. Todavia, ao regressar ao território para fins de execução forçada, a sentença arbitral encontra novamente o crivo da ordem pública, nos mesmos termos aplicáveis às sentenças judiciais estrangeiras.
Distingue-se, assim:
- Celeridade procedimental: Menos formalismo, prazos reduzidos (art. V da Convenção de Nova Iorque)
- Controlo material: Mesmos limites de ordem pública (art. V.2 da Convenção)
V. Estratégias de Litigância Transnacional
Nos litígios internacionais, investidores e empresas adoptam estratégias distintas para proteger os seus interesses.
Investidores Estrangeiros
Buscam segurança e previsibilidade através de:
- Cláusulas arbitrais neutras (ICC - Câmara de Comércio Internacional; LCIA - Tribunal de Arbitragem Internacional de Londres; CIETAC - China) para garantir imparcialidade
- Mapeamento prévio de bens executáveis em várias jurisdições, antecipando resistência à execução
- Seguros de risco político para se proteger contra instabilidade estatal, expropriação ou incumprimento contratual por entidades públicas
- Forum shopping: escolha estratégica da sede da arbitragem e da lei aplicável
Empresas Angolanas
Defendem-se com base em:
- Falhas de citação (nulidade processual por falta de notificação válida no processo originário)
- Excesso de jurisdição (quando o tribunal estrangeiro não tem competência internacional nos termos do direito angolano)
- Ordem pública económica, invocando soberania e protecção do interesse nacional em sectores estratégicos
- Inexistência de reciprocidade (quando aplicável)
A título elucidativo, importa ressaltar que a litigância transnacional é o ponto de encontro entre a protecção do investimento internacional e a defesa da soberania angolana — o equilíbrio decisivo no contencioso global de energia, construção e arbitragem comercial.
VI. Conclusão
Angola não se fecha ao mundo jurídico. Mas não abdica da sua autoridade jurisdicional.
Afirma um modelo equilibrado:
- Aberto ao investimento e ao comércio internacional
- Rigoroso no controlo da ordem pública
- Preparado para resolver litígios complexos através de arbitragem e cooperação judicial
- Soberano na preservação dos valores fundamentais da sua ordem jurídica
Angola executa, mas executa segundo os seus próprios termos. Este equilíbrio entre abertura e protecção não é uma anomalia — é a expressão jurídica da soberania responsável num mundo economicamente integrado.
Notas de Rodapé
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Exequatur como condição de eficácia: Código de Processo Civil (Dec.-Lei n.º 44.129/1961), arts. 1090.º–1104.º, ainda em vigor em Angola.
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Lei da Arbitragem Voluntária: Lei n.º 16/03, de 25 de Julho de 2003, publicada no Diário da República, I Série, n.º 58.
-
Convenção de Nova Iorque (1958): Resolução n.º 38/16, de 12 de Agosto de 2016; Carta de Adesão n.º 10/16, de 19 de Dezembro de 2016; depósito em 6 de Março de 2017; entrada em vigor em 4 de Junho de 2017 (90 dias após depósito, nos termos do art. XII da Convenção).
-
Cooperação Judicial Internacional em matéria penal: Lei n.º 10/24, de 3 de Julho de 2024 (altera a Lei n.º 13/15 - Lei sobre Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal).
-
Ordem pública constitucional: Constituição da República de Angola, art. 26.º (âmbito e sentido dos direitos fundamentais) e art. 56.º (limites aos direitos, liberdades e garantias).
-
Arbitragem Voluntária: Lei n.º 16/03, arts. 46.º-52.º (reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras).
Bibliografia
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Born, Gary B. International Commercial Arbitration. 3.ª ed., Kluwer Law International, 2021.
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Redfern, Alan; Hunter, Martin; Blackaby, Nigel; Partasides, Constantine. Law and Practice of International Commercial Arbitration. 6.ª ed., Oxford University Press, 2015.
-
Ferreira, José Octávio. Curso de Processo Civil Angolano. 4.ª ed., Luanda, 2021.
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Moitinho de Almeida, José Carlos. "O Exequatur de Sentenças Estrangeiras no Direito Angolano", in Revista da Ordem dos Advogados de Angola, 2019.
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Pinheiro, Luís de Lima. Direito Internacional Privado, vol. III (Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras). Almedina, 2002.

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